quinta-feira, 23 de abril de 2009

Cartas

"O sentimento singelo que se apoderou de mim começa agora a desvanescer-se, não que tenha perdido valor mas talvez esteja escondido timidamente no tempo. Apago lentamente todos os teus gestos e facetas; escondo nos meus olhos os teus traços e impeço racionalmente o teu perfume doce e subtil. Encaro novas realidades, despeço-me de antigos sonhos. Parto lentamente da tua mão para um novo abraço e trato de recortar bem cada memória até desaparecer.
Evito a todo o custo o nosso reencontro e mais ainda: evito até a tua presença na minha alma (que ironia). Enquanto te escrevo esta carta arrumo as tuas notas amorosas deixadas pela manhã; derramo uma ou outra lágrima ao recordar as paredes que trepamos só para poder apreciar o melhor pôr-do-sol, mas nada de especial, acredita. Se conseguir, esta será a última vez que lerás palavras minhas: as novidades saberás pelas tuas fontes (toda a gente tem algumas). E agora, no tom muito tímido e suave com que te disse o primeiro amo-te, digo-te adeus.

Beijinhos."

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Viagens I

03:00h - A criança nasce silenciosamente num escuro pertubador. A mente está reduzida ao pensamento do tempo.
04:27h - A cor outrora amarela ganhou agora encanto, um tom alaranjado intenso e quente: a paixão nasceu.
05:43h - Florescem as primeiras pétalas de um frágil malmequer (que inocência!).
06:00h - A sensação de toque irrequieta a alma que se eleva a um nível posterior de emoções.
07:58h - À primeira brisa a mente retira-se do físico.
08:13h - O relativismo da situação levou a um dramatismo exagerado que se apoderou da alma.
09:00h - A face está repleta de vergonha - prisioneira da liberdade revoltou-se.
10:33h - O caminho cobriu-se de pedras arredondadas para que a passagem não fosse dolorosa.
11:45h - Nunca a saudade esteve tão perto - a presença da ausência saturou os sentimentos.
12:00h - Por agora a viagem é concluída. Prosseguiu apenas o olhar reduzido ao coração.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Deuses e Deuses

O céu anunciava mais uma bela manhã de Domingo e todas elas tinham o seu encanto. Adorava aquele ritual: eram 9h e eu já estava pronta com os meus sapatos mais bonitos e o longo cabelo penteado; as unhas roídas e as sardas características denunciavam a minha atitude e o facto era que eu só aguardava a boleia para a igreja.
Os sinos tocavam às 10h e eu esperava ansiosamente para entrar na festa: era como se naquele instante tudo fosse puro e imaculado e a minha alma se elevasse ao mais alto nível. Todos eram bons, todos desejavam a paz de Cristo enquanto eu entoava as notas de glória. As palavras ditas por aquele Senhor de sandálias e meias soavam-me melhor que hoje as do Aristóteles e, as leituras vindas de um velho livro empoeirado, eram recebidas com alegria.
Hoje cresci, demasiado até. Ao crescer uma enorme quantidade de pecados fica arrecadado e todas as confissões se tornam insuficientes. Hoje percebo que os gestos bondosos não passavam de hipocrisia, que o dinheiro para os pobres empregou-se lindamente numa nova estátua e que para além das portas da igreja ninguém era irmão de ninguém. Não sei que Deus adoravam eles, mas o meu mantém-se inalterado no espírito e muito além da materialização que lhe atribuem.